Em novembro do ano passado, Jane Campion chegou à Netflix com seu filme mais recente,  Ataque dos Cães, após um hiato de doze anos longe da direção para o cinema. O drama sobre dois irmãos que administram um rancho no Oeste norte-americano em 1925 é uma bem construída narrativa sobre relações familiares, amor e convenções sociais, e as dificuldades de conciliar tudo isso. O tópico relativo ao gênero do filme, no entanto, foi o que mais me chamou atenção na época: seria Ataque dos Cães um retorno ao western?

Digo desde já para quem não quiser permanecer até o final: não. Cheguei a essa conclusão recorrendo a um repertório no qual, reconheço, pouco me demorei no cinema. O western, com seu maniqueísmo, a jornada do herói solitário e a dicotomia homem/dureza do meio ambiente me atraiu pouco até conhecer a ambivalência dos tipos humanos de uma de suas crias: o spaghetti western. E foi por isso que resolvi assistir, de uma tacada só, o filme novo de Campion e o clássico Três Homens em Conflito.

Não há nada de errado com a simbologia do mocinho versus bandido. Esta, aliás, é a premissa básica da maior parte dos roteiros do cinema. Mas os tipos criados pelo mestre do spaghetti, Sergio Leone, que revelam algumas camadas além do bem e do mal, são muito mais interessantes. 

Leone esticou o western para fazê-lo sobreviver, adaptando-o ao que a sociedade dos anos 1960 pedia: realismo ao invés da polarização. Os Estados Unidos viviam, no período, o desastre da atuação no Vietnã. Os personagens do spaghetti western, apesar de produzidos na Europa, estouraram do outro lado do Atlântico por trazerem a crueza da realidade no conforto de um dos gêneros mais antigos do cinema.

É nessa intersecção que o drama de Ataque dos Cães se encontra com a desesperança de Três Homens em Conflito. E só. Ambas são histórias tensas que se passam no contexto do Oeste norte americano, com personagens multifacetados, mas com aproximadamente 60 anos de diferença (na narrativa). Na época de Três Homens em Conflito, os brancos ainda estavam em pé de guerra entre si e com comunidades indígenas na expansão para o Oeste, num conflito com “o outro” que se mostra na concepção de uma estrutura narrativa que tem três protagonistas “fora da lei” que não se entendem.

São personagens naturalmente sem raízes nem escrúpulos, que levam a sério apenas o espírito dos desbravadores e o instinto de sobrevivência. Apesar do realismo, pouco há de profundidade em sua caracterização, aspecto que encanta, ao contrário, em Ataque dos Cães. E esta é a característica típica de seu gênero raiz, o drama. 

Ao invés do conflito com o outro, os personagens estão brigando consigo. A repressão sexual e os resquícios de selvageria tão bem mesclados neste exemplar dramático poderiam ter como cenário qualquer comunidade rural ocidental e não só o Velho Oeste. A ambientação, no drama da Netflix, se aproxima mais da homenagem do que das características de gênero.

Há, ainda, um efeito formal que separa bastante Três Homens do lançamento de Jane Campion: a direção de fotografia aliada à montagem. Apesar dos elogios frequentes à fotografia de Ataque dos Cães, qualquer um que assistir à trilogia do Pistoleiro sem Nome há de sentir falta do tempo que se dava, na edição, à fotografia de Tonino Delli Colli. O tempo de apreciar as paisagens que transmitem calor, aridez, solidão. Um tempo que os espectadores de Ataque dos Cães dedicam à observação de expressões faciais, diálogos e cores milimetricamente pensadas para adensar um drama. 

Há quase nada de western em Ataque dos Cães e isso não é problema. A densidade dos conflitos internos e a sombra da moral patriarcal cristã importam muito mais para o roteiro do que a aventura, que importava para uma época que pedia o conforto da vitória. Mesmo que seja uma vitória solitária, mesmo que seja do mal. 

No drama contemporâneo apenas ambientado no Oeste, a aridez e a solidão se expressam na tela com cores, atuações esmeradas e música executada pelos personagens. É como se estivéssemos diante de um contraste entre uma obra protagonizada por gente e outra em que o meio ambiente é coprotagonista. E essa é a marca maior de qualquer western que se preze.