por Rafael Duarte
Nos versos do samba “50 anos”, Aldir Blanc e Cristóvão Bastos são taxativos: “perdoo a todos, não peço desculpas: foi isso o que eu quis viver”. Embora tenha ganhado a voz de Paulinho da Viola no disco comemorativo pelas bodas de sangue de Blanc, a música não entrou no repertório do show em que o pupilo da Portela comemora, agora, cinco décadas de carreira. Mas os versos estão lá, na penumbra, entre um acorde e outro, macios como a voz do menestrel.
Paulinho viveu – e continua vivendo – o que realmente quis. Distante de polêmicas, sem saudosismos nem pedidos de desculpas. No documentário dirigido pelo jornalista Zuenir Ventura ele mesmo já se apropriara dos versos do samba de outra referência para se reafirmar. “Meu tempo é hoje”, de Wilson Batista, é mais uma das extensões do Paulinho da Viola, do Paulinho do bairro de Botafogo, do Paulinho da Portela.
Ouvir o Da Viola é como caminhar todos os dias pela manhã na praia da Redinha. Apesar de saber que aquele azul de que trata seu samba mais conhecido não era do céu nem era do mar, a elegância dos poucos passistas na areia intercalando bom dias e votos de felicidade aproximam o Paulinho da praia onde sopram os bons ventos das redes de pescar.
No show em que comemora 50 anos de estrada, o Paulinho tímido e gigante se revela e se revê. Na companhia quase solitária do violão, começa voltando aos 14 anos de idade para seguir falando da vida. E aí, como num passe de mágica, o público redescobre que o Brasil já viveu e sofreu um dia só por amor. Enquanto os sambas saem feito água de coco do palco, ora do violão ora do cavaquinho, o preconceito, a intolerância e o ódio tão presentes no cotidiano de agora se escondem. É quando Paulinho nos atualiza ensinando que há certos tipos de dor que, de fato, não tem razão.
O lirismo de Paulinho da Viola é inspirador. O repertório dos 50 anos passeia por várias fases da carreira do compositor. Tal qual uma delicada caixinha de música, dali surgem histórias escolhidas a dedo, fundamentais para compreender a formação de quem, para muitos, é o sucessor do baluarte Paulo da Portela, patrono da Velha Guarda.
Apesar do samba que corre nas veias, Paulinho também reverencia o choro. Está ali a origem de tudo. Das reuniões em casa com músicos refinados, da parceria do pai César Farias com Jacob do Bandolim por 30 anos. Ponto para a direção do espetáculo. É hora de assistir o passado. Sentado no banquinho, de olho na tabela entre o piano e o clarinete, Paulinho contempla o choro “Inesquecível”, composto em 1964. É o momento mais intimista do show, o encontro entre Da Viola e o moleque Paulinho.
A história da parceria com Hermínio Belo de Carvalho em “Sei lá, Mangueira”, que termina no clássico “Foi um rio que passou em minha vida”, é um desses registros para quem ouviu não esquecer. Outro momento mágico é quando revela o pedido de Rubens Santos, um dos parceiros de Lupicínio Rodrigues, que reclamara antes de um show a forma como uma de suas canções estava sendo tocada e gravada, diferente da versão original. E desde então “Nervos de aço” nunca mais foi a mesma na trajetória do sambista.
Além de Lupicínio e Hermínio, Paulinho estende o tapete vermelho para Walter Alfaiate, Noca da Portela, o conjunto Rosas de Ouro e a turma do Zicartola, onde tudo começou profissionalmente. E dá aos músicos anônimos de Botafogo, bairro onde nasceu, a mesma importância dos grandes mestres consagrados.
Nessa briga eterna de cada dia onde, invariavelmente, o passado é condenado a ser melhor e mais importante que o presente, viver no tempo de Paulinho da Viola é dispensar o tempo. Ouvi-lo é como dormir e acordar em paz ainda que com a velha dúvida de sempre: por onde andou meu coração?
*Rafael Duarte é jornalista
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