Recentemente, em uma live da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte, conversei com Fábio de Silva sobre o quanto o cinema potiguar mudou. Há 20 anos, quando comecei a frequentar festivais e mostras de cinema, havia quem ousasse enviar, para competição, reportagens ou documentários feitos para a TV. Se fosse vídeo, poderia ser mostrado na tela grande e premiado — o raciocínio era este.

Ainda bem que esse tempo ficou para trás. Um dos impulsos mais fortes dados à retomada do cinema potiguar foi o edital Doc TV, do qual o próprio Fábio participou. Ele e Maryland Brito tiveram fôlego para custear, em 2008, o impressionante documentário sobre uma chacina, ocorrida em São Gonçalo do Amarante, a última obra da série de filmes locais financiada pelo edital da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (Sav/Minc). 

Outros editais locais foram suplementados com recursos federais por meio do Fundo Setorial do Audiovisual e a produção local de curtas metragens foi incrementada. Sobre o assunto, o artigo de Diana Coelho no livro Claquete Potiguar: Experiências Audiovisuais no RN é certeiro e detalhado. O que se observa, de 2013 pra cá, desde o primeiro edital Cine Natal, é que a produção de curtas ganhou equipes especializadas, atores reconhecidos e temas que não precisam recorrer ao regional.

Introduzi o tema para falar de dois filmes lançados na semana passada, de autores surgidos desse momento do cinema feito no Rio Grande do Norte. O primeiro é Sombras da Alma, do artista plástico e cineasta Pedro Balduino. E o segundo, Não nos deixeis, é o mais recente curta do realizador Davi Revoredo.

Sombras da Alma, assim como o curta anterior de Balduino, Lemniscata, é uma narrativa de suspense com referências no surrealismo e no noir. Com uma história que mescla a tensão de um passeio de bicicleta noturno e a subversão de uma personagem que luta por escrever uma história, o filme é bem sucedido na proposta de causar medo e alívio, com direção de arte esmerada, adaptada à narrativa.

Pode-se dizer que Sombras da Alma está muito longe daqueles primeiros exemplares enviados aos festivais de cinema do início da década de 2000. Balduino tem à mão um elenco adaptado ao modo de atuar para o cinema, equipe dedicada a detalhes como figurino e direção de arte e, principalmente, liberdade para criar uma ficção com um pé na fantasia. 

Essa liberdade poderia haver em anos anteriores, mas o receio de enveredar pela ficção parecia assombrar os cineastas locais. Os trabalhos de Davi Revoredo, responsável pelo curta Não nos Deixeis, são outro sinal disso. Apesar de produzir roteiros pautados pela crítica mordaz à realidade, como em Distorção, Davi escreve como quem imagina uma realidade paralela, sem medo de recorrer ao absurdo e à distopia.

Não nos Deixeis é uma daquelas joias do cinema que nos faz sentir incômodo e admiração, por aliar um roteiro sombrio a uma produção grandiosa. A história do filme se passa num momento pós-apocalíptico, quando a humanidade, massacrada pela destruição ambiental, vive as consequências da própria extinção. O roteiro se inspira numa passagem da Bíblia, aquela em que a Ló e suas filhas se abrigam em uma caverna ao fugir da destruição das cidades de Sodoma e Gomorra. 

Os enquadramentos e sons do filme intensificam a sensação de deslocamento para um tempo diverso deste em que estamos, sem o excesso das cidades. E é esse marasmo que acentua a tensão sufocante provocada pelas atitudes de Ló em relação às filhas. O roteiro acertou em economizar nas palavras e centrar atenção nos gestos dos atores. Cada expressão fala, e a direção soube explorar os silêncios e as sombras. 

Assistindo aos dois filmes é possível ter um retrato do cinema potiguar atual como um cinema diverso e ao mesmo tempo universal. Diverso porque reúne coletivos e realizadores que se interessam tanto pelo registro documental quanto pela ficção e que têm em suas equipes gente que trabalha estéticas bastante díspares. Universal porque não precisa se apegar ao que é local para contar histórias. Os curtas Sombras da Alma e Não nos deixeis são exemplos disso. Histórias que poderiam se passar em qualquer lugar, mas que são frutos da construção artística de seus criadores, que se fizeram aqui.