Voltou ao espaço do Barracão uma das montagens da trilogia latino-americana – Nuestra Senhora de las Nuvens, Abrazo e Dois Amores Y Un Bicho – que o grupo potiguar Clowns de Shakespeare estreou no final de 2014. Iniciativa de se aplaudir, como eles mesmos têm feito questão de lembrar: numa cidade sem teatros, manter uma peça em temporada de três finais de semana é quase uma afronta à sobrevida. Uma ode à resistência. O texto de Nuestra Senhora é do dramaturgo argentino Arístides Vargas, e assim como em outros espetáculos do grupo, a tradução e direção são de Fernando Yamamoto.
Vargas foi obrigado a se exilar durante a ditadura militar argentina e sua família, que permaneceu lá, sofreu as consequências quando ele passou a viver no Equador. O texto é, claramente, um emaranhado de recortes de sua experiência autobiográfica, com referências à sua clandestinidade e o reconhecimento de colegas que viveram o mesmo processo. Fossem compatriotas ou não. A narrativa acontece em dois tempos de ação: o relato dos que se encontram no exílio e relembram com nostalgia a época em que viviam em Nuestra Senhora de las Nuvens; e o tempo daquelas lembranças, que recupera o lugar de onde os exilados vieram em esquetes que duram alguns minutos e que parodiam o mundo de qualquer província.
Nesse “tempo das lembranças” há a memória do carnaval, o conto das origens do lugar em que todos são da mesma família (referências ao coronelismo político latino-americano não são mera coincidência), e alguns momentos de comédia escrachada, um pouco clownesca, como o relato de quando a mulher do maestro o fez passar vergonha diante de toda a orquestra. Tudo isso costurado com depoimentos de quem foi obrigado a viver fora de seu país porque não se conformou com o conformismo generalizado.
A direção contrasta o colorido do mundo das lembranças com o cinza dos relatos, extraindo, de um grupo um tanto irregular de quatro atores, performances destacáveis, que chocam e fazem rir a plateia. Um público que – pasmem – ainda se assusta com cenas de nudez. Mas é claro que existe um porém. Assim como as memórias de um exilado, bastante fragmentária e dispersa, o texto de Nuestra Senhora demora a engatar. Há momentos geniais e vários em que faz dispersar, como numa conversa muito longa em que o interlocutor muda de assunto várias vezes.
O figurino, de João Ricardo Aguiar e Maria de Jesus, ao lado da cenografia, também de Aguiar e Fernando Yamamoto, são jóias que encantam e sedimentam o grupo como um dos grandes representantes do bom teatro contemporâneo brasileiro. Pode-se comparar o trabalho dos Clowns de Shakespeare com outros pelo Brasil e raramente se encontra uma produção tão esmerada em figurino quanto a deles. É teatro de encher os olhos, fazer admirar cada detalhe de uma cena.
Rafael Teles e Marco França são os responsáveis pela trilha sonora, que junta Gotan Project e temas de caixinha de música, outro deleite para o espectador. Ao lado da iluminação de Ronaldo Costa, complementam a bela construção visual de Nuestra Senhora de las Nuvens. Faltou à adaptação, no entanto, impiedade para cortar os excessos do texto. Dar mais liga à desconexão. Se fazia parte das intenções do autor, o intento não ficou claro e acaba funcionando mal no todo.
É um trabalho menor do grupo, que já fez adaptações redondas, como Muito Barulho por Quase Nada. Falta a magia de um texto bem conectado, daqueles que vai conduzindo a um clímax sem que ninguém se dê conta. Mas como relato de uma viagem com memórias que não se esquece, o espetáculo até que agrada. Porque nunca é demais contar esse tipo de história.
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