“Escolhi refletir o tempo e as situações em que me encontro. Para mim, isso é o meu dever, e neste momento crucial de nossas vidas, quando tudo é tão desesperador, quando tentamos apenas sobreviver a cada dia, não tem como não se envolver. Jovens e negros sabem disso, e é por isso que estão tao envolvidos com a política. (…) Não se tem escolha… Como ser artista e não refletir a época?”
Finalmente assisti a What happened, Miss Simone?. A cinebiografia de Nina, mito do soul/jazz/blues norteamericana – que de tão sofrida pessoalmente ficou para a história da música como um caso de mulher, apesar de talentosa, atormentada – mexeu especialmente comigo nestes dias de turbulências políticas e história que se faz à nossa frente.
Nina sofreu, como todos os negros que ganham notoriedade em nossa sociedade branca e machista, com barreiras de todos os tipos, desde criança, para se firmar no mundo da música. Estudou piano clássico toda a infância e adolescência, mas não foi aprovada no teste do Instituto Curtis, de nível universitário, e acabou tendo de ganhar a vida tocando piano e cantando em bares de Atlantic City. Não foi escolha, diz ela no documentário; mesmo depois de estourar após lendária apresentação no Carnegie Hall, se ressentia de não ter seguido carreira como pianista clássica.
O documentário vai além de uma abordagem superficial comum nos últimos lançamentos sobre estrelas da música pop. Em Amy, de Asif Kapadi, a vida de Miss Winehouse é muito mais explorada que sua obra, numa tentativa de vender um lado B, reservado, que os jornais não foram bem sucedidos em relatar. Já no recente Chico – Artista Brasileiro, de Miguel Faria Jr, entramos no labirinto do processo criativo de Chico, numa narrativa que tenta aproximá-lo da pessoa comum e cheia de conflitos que ele é – e que todos somos, claro.
Em What happened, Miss Simone?, no entanto, os rodeios ficaram de fora da montagem, e nenhum depoimento, nenhum áudio da própria cantora, nenhum fotograma é inútil. Nina é o exemplo da mulher que foi oprimida de várias formas, por aqueles que negaram sua matrícula na universidade, pelo marido violento; e toda sua fúria foi canalizada para o movimento por direitos civis nos Estados Unidos nos anos 60 do século XX. Nina compôs Mississippi Goddamn e o mundo olhou feio. Esteve na marcha de Selma, conviveu com artistas e intelectuais ligados à causa, cantou no enterro de Martin Luther King. E aí o mundo comercial veio abaixo. Seus discos eram recusados pelas rádios, os shows minguaram.
Iniciei este texto referenciando o ativismo de Nina Simone porque esta semana vivemos situação peculiar e, parece, agora recorrente na vida cultural brasileira. Kléber Mendonça Filho – diretor do longa Aquarius, forte concorrente à Palma de Ouro em Cannes – e sua equipe fizeram um protesto silencioso, com cartazes, denunciando a tentativa de golpe branco no Brasil. Seguiu-se a essa atitude uma manifestação parecida à da indústria musical dos Estados Unidos na época de Nina: incitação ao boicote, críticas raivosas ao gesto de atores e diretor, sugestão de que seria um protesto suspeito pelo patrocínio que o filme recebeu via leis de incentivo.
Somente uma sociedade que silencia diante da opressão à diversidade é conivente com atitudes desse gênero por parte de seus meios de comunicação. O protesto de Kléber e de sua equipe faz parte de uma série de outros que se espalham pelo Brasil e exterior, conclamando a sociedade a entender que a extinção do Ministério da Cultura, por exemplo, foi uma tentativa de silenciar a classe artística nesse processo de impeachment, meio este que historicamente se posiciona de forma contundente diante da corrupção, do autoritarismo, do obscurantismo.
O que What happened, Miss Simone? me fez ver é que apesar dos boicotes, a arte resiste. Sem dinheiro, claro, ela passa a ser escassa, gera feridas profundas na mente criativa de gente como Nina. Mas apesar da conivência de muitos com a opinião “livremente” imposta pelos meios de comunicação, a história acaba demonstrando que sem Ninas e sem Klébers, o mundo não gira e a opressão resiste. Sejamos, pois, atentos a essa gente.
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