“Eu quero ser normal, como os outros.” A sentença de Marième, diante da negativa da professora quanto à sua continuidade na escola, soou como gatilho de uma série de ações que se sucedem nas quase duas horas de projeção de Girlhood, terceiro longa-metragem da diretora francesa Céline Sciamma. Marième é negra, mora num subúrbio parisiense e sugere à professora que algo – ou alguém – lhe causa problemas que a impedem de tirar melhores notas para ir à faculdade. Ela não parece estar, no entanto, de acordo com o julgamento da professora. Se o colégio lhe fecha uma porta, Marième abre outras.
Mais uma vez, depois do sucesso de Tomboy, Sciamma recorre aos primeiros planos para abordar as questões de gênero e definição de identidade na adolescência. Se Tomboy tratava de uma criança à procura de sua própria identidade de gênero a partir de uma mudança de grupo social, agora, a protagonista precisa encontrar seu caminho em um mundo que parece não aceitar mulheres suburbanas negras que queiram algo mais do que limpar quartos de hotéis finos. Marième se depara, em sua trajetória, com uma série de negativas; mas também tem as suas muito bem definidas, e declará-las ao mundo fará parte de sua construção de identidade.
O recorte apresentado por Sciamma, embora realista, não repete as abordagens clássicas de dramas sociais que levam espectadores a encarar os protagonistas como pobres homens e mulheres sem opções devido à estratificação social. Em uma das cenas mais tocantes do filme, Marième – já transformada em Vic – e as três amigas de sua gangue cantam Diamonds, de Rihanna, com roupas roubadas de lojas parisienses às quais não têm acesso, em um hotel pago com dinheiro extorquido de outras meninas na escola. Estão felizes por algumas horas, e ali, trancadas em um cubículo em que podem fazer o que bem entenderem, têm suas identidades definidas pelo que lhes dá prazer. O azul que predomina na fotografia dessa sequência casa perfeitamente com letra que diz que elas são lindas como diamantes no céu.
No entanto, nem tudo é azul, e muito menos diamantes no caminho das meninas. Os estereótipos do homem que maltrata mulheres que decidem ser donas de sua própria vida sexual, da vendedora que segue as garotas para ter certeza de que não vão roubar na loja de departamento, e as lutas de arena em que cortar o sutiã da adversária é o prêmio máximo, são lembranças da realidade que insiste em colocá-las em batalha constante pela afirmação e igualdade de direitos. A peculiaridade do tratamento que a diretora dá a sua protagonista é a naturalidade com que trabalha seu inconformismo, que nada tem de heróico. Vic ainda não tem muito claro o que vai fazer da vida, mas com certeza sabe o que não quer.
Se na década de 1990, Larry Clark apresentou adolescentes perdidos em sua busca pela identidade em Kids, o cinema francês mais recente tem dado exemplos de uma abordagem que foge da tese do homem como produto social. Sylvie Verheyde com sua Stella, e Mia Hansen-Love com Adeus, Primeiro Amor, são exemplos de um cinema que se define pela construção de personagens em momentos de transição, sem cair no óbvio de dar-lhes a condição de vítimas. Céline Sciamma, com Girlhood, está nessa trajetória. Segue o caminho de uma cinematografia que dá protagonismo a personagens que estão à margem, mas que no fim, enfrentam suas contradições sem cair em estereótipos clássicos. Gente que não se pretende extraordinária, mas que acaba sendo ao tomar as rédeas de suas escolhas.
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