A primeira coisa que me veio à cabeça após concluir a sessão de Um Alguém Apaixonado foi: como é que um diretor iraniano filma uma trama no Japão, toda falada em japonês, com atores locais, e consegue extrair tantas sutilezas essenciais ao desenvolvimento da trama usando o recurso de aproveitar as variações do idioma, naturalmente cambiável de acordo com o que manda a situação?

Pois em sua segunda incursão recente em fazer cinema em terras estrangeiras (lembre-se de Cópia Fiel, filmado na Itália e falado num inglês charmoso por uma protagonista francesa), o iraniano Abbas Kiarostami conseguiu me deixar feliz e perplexa ao mesmo tempo. Um Alguém Apaixonado tem um mote prosaico, como vários outros de sua carreira. A protagonista Akiko, uma estudante que tem uma vida dupla como garota de programa, é mandada à casa de alguém muito respeitado por seu chefe, e com ele passa uma noite e um dia que renderão fortes emoções aos dois. Tudo isso sem muita ação – e eu diria até que basicamente só com diálogos.

O mote é simples, mas a cadência da trama é responsável por puxar a curiosidade do espectador pelo colarinho: à medida em que se amontoam as situações que vão deixando Akiko sufocada em sua vida dupla, estamos todos também divididos. Kiarostami não julga, porque como o faz desde O Vento nos Levará, apenas apura o foco de sua lente nos primeiros planos e observa e respeita seus personagens (muitas vezes reais, mas não neste caso), tornando-os extraordinários. Sabe aquela história do “de perto, ninguém é normal”? E é assim que conseguimos nos colocar na pele de Akiko, de seu chefe, e até do mecânico.

A relação que se estabelece entre a personagem feminina e o professor é sintomática de uma solidão difusa e constante na sociedade contemporânea, poderíamos dizer. Mas a frase já está virando um clichê. A partir dos anos 50, com os filmes do pós-guerra, relações simbióticas entre solitários começaram a pipocar na tela. O Eddie Felson de Paul Newman e os homens sem nome de Clint Eastwood são símbolos dessa tese. O drama de Um Alguém Apaixonado se mostra peculiar, no entanto, por não apelar para personagens párias, mas por eleger gente bem comum. Like Someone

E gente bastante comum que, na sociedade japonesa, claramente dada a esconder seus sofrimentos, aparece pouco nos filmes nipônicos. Mas Akiko é estranhamente transparente e usa uma linguagem formal para falar com o professor, exagerando no rebuscamento até contando uma piada; por outro lado, separa as expressões grosseiras e o tom agudo na discussão com o chefe. O que se vê em Yasujiro Ozu ou em Takeshi Kitano são os dois opostos colocados de forma separada: a linguagem formal ou a linguagem inculta. Kiarostami, então, ganhou em sua aposta: a utilização das nuances da linguagem aparece como algo bastante adequado no desvelo dos personagens.

Mas não são só os diálogos que importam para o diretor. O filme tem de positivo grandes atuações, uma direção de arte e cenários limpos, e, como já foi dito, os primeiros planos que valorizam personagens. É um filme para quem gosta de sorver diálogos e observar os modos da cultura oriental, pelos olhos de um cineasta estrangeiro.

P.S.: Começo a série de críticas do ano no blog com esse filme, lançado no Brasil no finalzinho de 2012, e justifico a escolha com a conclusão de que foi um dos melhores que vi em 2013. Revi no último fim de semana e não pude deixar de expressar essas observações.
Prometo que trarei coisas mais novas nas próximas semanas. 🙂