Ficar sempre atrás das câmeras deve frustrar os cineastas, por isso alguns deles foram levados a criar personagens, espelhando-se em si mesmos. Personagens esses que terminaram estrelando diversas películas, caracterizando-se pela interpretação de um mesmo ator.
Antoine Doinel, alter ego de François Truffaut, é um dos mais conhecidos; sempre interpretado pelo ator Jean-Pierre Léaud, desde Os incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959), passando pelo episódio Antoine e Colette, de O amor aos vinte anos (L´amour à vingt ans, 1962) e a trilogia Beijos Roubados (Stolen Kisses, 1968), Domicílio Conjugal (Bed & Board, 1970) e O amor em fuga (Love on the Run, 1979).
Há também o João de Deus, alter ego do cineasta português João César Monteiro, interpretado pelo próprio, em filmes como Recordações da Casa Amarela (1989), As comédias de Deus (1995) e As bodas de Deus (1999).
O Zé do Caixão, do José Mojica Marins, personagem que o diretor e ator concebeu em 1963, para o filme À meia-noite levarei a sua alma, o acompanha até hoje e é um sucesso nos Estados Unidos, onde foi rebatizado como Coffin Joe.
Mais recentemente o cineasta Peter Greenaway, com seu audacioso projeto multimídia As maletas de Tulse Luper (The Tulse Luper Suitcases), vê-se metaforicamente na pele do personagem Tulse Henry Purcell Luper, escritor e projetista, que se tornou um “prisioneiro profissional”, reconstruindo a história de sua vida a partir da evidência de 92 maletas, encontradas no mundo todo entre 1928 e 1989, segundo o crítico de cinema Leon Cakoff. Concebido para ser apresentado através de uma trilogia, uma série de TV, 92 dvds e livros, além de cd-roms, games e websites. Tulse Luper está sendo interpretado pelo ator JJ Feild, que já filmou The Moad Story (2003), Vaux to the Sea (2004) e From Sark to the Finish (2004).
Mas, talvez, o caso mais peculiar de alter egos no cinema seja o personagem Adam Miauczynski, criação do diretor polonês Marek Koterski, justamente pela singularidade do seu cinema.
Koterski é dramaturgo e seus filmes são deveras teatrais (ele costuma escrever o roteiro da peça e só depois o adapta para o cinema, nunca filmando nada que não tenha ele mesmo escrito). No início de sua carreira, produziu diversos curtas e médias-metragens, como diretor assistente, bem como uma porção de documentários no Wytwórnia Filmów Oswiatowych (Educational Film Studio), na cidade de Lódz. Só depois de quarentão é que fez o seu debut como “diretor principal” com A casa dos loucos (Dom wariatów, 1985). E foi nesse filme que, pela primeira vez, entramos em contato com o personagem Adam Miauczynski, interpretado pelo ator Marek Kondrat, que repetiu o papel em Day of the Wacko (Dzien swira, 2002) e Somos todos Chrystusami (Wszyscy jesteśmy Chrystusami, 2006), mas o personagem foi interpretado também por Cezary Pazura, em dois filmes: Nothing Funny (Nic smiesznego, 1995) e Aljawju (1999).
Adam Miauczynski é divorciado, fuma compulsivamente, tem insônia, torna-se alcoólatra e está sempre imerso em suas neuroses, medos e frustrações. Ele é o protótipo do homem sonhador e ambicioso, mas que não conseguiu dar um rumo para a própria vida e acabou se tornando um poço de nervos.
Conta Marek Kondrat que Koterski lhe disse para não só interpretar Adam, mas sim ser o personagem, vivê-lo integralmente. O roteiro de A casa dos loucos foi escrito em três semanas e Koterski falou que ele foi o resultado de “traumas acumulados”. Nesse filme, ele criou toda uma atmosfera autobiográfica, inclusive o Adam criança foi interpretado pelo seu filho.
Em A casa dos loucos, Adam (então com 33 anos) vai fazer uma visita a sua família, passando uma noite na casa de seus pais, e lá encontra o irmão Gigi (aparentemente o mais lúcido da família), a cunhada Wanda e a sobrinha Aska. A maior parte da ação desenrola-se na sala de jantar, onde completamente sem jeito Adam tenta se livrar do chá preparado por sua mãe, toca piano, lê o jornal, janta, fuma. Ele só consegue estabelecer diálogos superficiais com o seu pai e com a sua mãe, pois ambos ficam pra lá e pra cá, em ações ritualísticas (o pai volta e meia bate as meias no fogão, a mãe fica tentando abrir a porta, que está sempre emperrada). Todo esse comportamento excêntrico faz com que Wanda pire e tente o suicídio, e quem a socorre é justamente um atormentado e insone Adam.
No último filme em que o personagem Adam Miauczynski aparece, Somos todos Chrystusami (2006), ele já está com 66 anos e procura se aproximar do filho (interpretado pelo filho de Koterski, Michal), o qual é usuário de drogas, e assim ter uma desculpa para se manter sóbrio, promovendo a redenção de ambos.
Apesar de se expor em demasia, Koterski costuma mostrar Adam por um ângulo tragicômico, chegando a rir de si mesmo, como acontece em Nothing Funny, embora admita que muitas das situações vividas por Adam foram fruto de sua imaginação, e que vê no seu heroi um meio de expressar seus medos, suas dores e seus embaraços.
Que os cineastas continuem se fazendo presentes à frente das câmeras, através de personagens intrigantes, sedutores, diabólicos e neuróticos, numa autêntica emulação da vida. Quando a gente se encara de frente, se enxerga por inteiro, procura corrigir as falhas e superar temores. Assim, atrás das câmeras teremos profissionais cada vez melhores (ou mais loucos).
I added your blog to bookmarks. And i’ll read your articles more often!
Thanks, Brown!