“A gente sabia que a Petra estava na rua e a Maria Augusta, no Senado. Então resolvemos ficar no Alvorada”. Assim a cineasta Anna Muylaert definiu seu mais recente filme, Alvorada, co dirigido por Lô Politi. Lançado com um intervalo de cinco anos desde os eventos que retrata, o filme é muitas vezes comparado a O Processo, de Maria Augusta Ramos, e Democracia em Vertigem, de Petra Costa. O filme de Muylaert e Politi tem, no entanto, uma característica chave a diferenciá-lo dos outros dois: dá voz e rosto à personagem principal dos eventos que redundaram no golpe de 2016, a então presidenta Dilma Rousseff.
Alvorada é um filme de bastidores, de dia a dia. Começa acompanhando problemas prosaicos como uma incógnita sobre a cor esverdeada do espelho d’água e os pedidos de carne e granola. Breves explicações aparecem nos caracteres iniciais, situando o espectador: estamos nas primeiras semanas após a abertura do processo de impeachment da então presidenta, em junho de 2016.
A atmosfera é leve, apesar da tensão do momento. A beleza arquitetônica do Palácio da Alvorada, casa dos chefes do Executivo, é exaltada em planos abertos, sem música, sem vozes em off. A intenção das diretoras em interferir o mínimo possível na narrativa fica bastante clara. Entram em cena entrevistas a jornalistas estrangeiros, reuniões com juristas também estrangeiros, um encontro com líderes dos partidos da base aliada. Neste ponto vemos, pela primeira vez Dilma pedir para que a filmagem seja interrompida.
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Uma conversa entre a presidenta e as diretoras define os limites da captação. Segundo Muylaert e Politi, foi naquela “discussão da relação” que as arestas foram aparadas. Dilma diz que não é um personagem. Há trechos dessa conversa em outros momentos do filme e é por meio dela que conhecemos um pouco mais da personagem, tão silenciada naqueles meses que antecederam sua deposição.
Dilma fala sobre literatura, sobre tango, sobre os amigos. Fala sobre Eduardo Cunha. E percebemos, meio sem querer, que poucas vezes vimos a gestora observada assim. Como gente. O Processo, de Maria Augusta Ramos, tem outros herois. José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, a equipe de defesa no Senado. Democracia em Vertigem é um filme em tom didático: mostra a chegada da esquerda ao poder sob perspectiva histórica, e os problemas que levaram à sua derrocada. Alvorada elege Dilma como heroína, apesar do clima de réquiem de seu governo.
As falas de pessoas que vão ao palácio demonstrar seu apoio reforçam isso. Em um encontro de lideranças femininas, uma das presentes pontua: os governos petistas promoveram a mobilidade das pessoas negras por meio de políticas públicas, distributivas, e não pela ascensão isolada. Frear esse tipo de mudança era urgente – e uma fala de Dilma, quase ao final, reforça essa perspectiva.
Aos poucos, porém, a atmosfera fica mais espessa e os assessores, silenciosos. Enquanto o filme registra pelas televisões do palácio a fala da presidenta no Senado, em agosto de 2016, os servidores começam a encaixotar objetos. Um de seus mais próximos assessores telefona a alguém: “tem previsão de posse do usurpador?”. Após uma hora de filme, a música de Villa-Lobos entra em cena e sentimos a quebra no silêncio então constrangedor.
Já sabemos o final desse enredo e quase cinco anos de consequências daqueles acontecimentos. Por que ver Alvorada, então? Porque ele nos fornece cenas de pura poesia e graça, como aquela em que Dilma discorre sobre a banalidade do mal, ou aquela em que, quase no final, um urubu invade o palácio e muito atrapalhadamente consegue sair. Há tomadas que dificilmente teriam sido pensadas, se fossem de ficção, como a da mesa presidencial rodeada de mulheres trabalhadoras.
Alvorada nos fornece um olhar de afeto de duas mulheres a uma outra mulher, como disse a diretora Anna Muylaert em bate-papo no Festival É Tudo Verdade, em que o filme estreou. “Fizemos um filme de observação. O que a gente viu, está lá”, completou Lô Politi. E é por contraste que percebemos que a personagem Dilma raramente foi de fato observada. Tachada de incompetente, linha dura e até de pouco habilidosa na política, ela era uma máquina de trabalhar, objetificada, como tantas outras mulheres. E é por isso que é belo que duas mulheres tenham escolhido retratá-la naquele momento de urgência.
*Publicado originalmente em 24 de abril de 2021 em Alvorada (saibamais.jor.br).
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